19 de maio de 2011

Parto de mim

O dia era grande. Daqueles sem agenda. Sem pés apressados. Sem olhos vigiando ponteiros. Acordei com a sensação de que o tempo era outra coisa. E a vida também. Com uma saudade que tinha feições familiares. (...) A qual eu chamava por diferentes nomes, em diferentes épocas, como se houvesse esquecido do que se tratava.
Quando, por algum descuido meu, a voz daquela saudade conseguia driblar os disfarces do meu ouvido, sussurrando ou gritando ela pedia que eu me entregasse. A saudade era do ser que me habitava. Que eu era, antes de estar qualquer coisa. A saudade era do ser que morava em mim. Que tinha um sol inteiro para me dar, quando a vela, de chama trêmula, que eu levava, estava se acabando. Que cultivava sorrisos atrás dos meus pântanos. Que não tinha idade. Que abraçava grande. Que pronunciava, sem baixar a voz, palavras como ternura, encanto, fascínio, pureza. Que atraía almas conterrâneas. Com uma musicalidade semelhante. Uma fragrância familiar. Com cheiro de bolo de vó.
De sonho sem medo. De vida beijada.
A saudade era do ser, em mim, que entendia de crisálidas. De sede. Pés. Miragens. Da dor das noites que esquecem de dormir. Das emoções que hesitam despertar. E, conhecendo as dores, chamando-as pelos nomes, não se agarrava a elas. Que se via em tudo. Em todos. Que confiava nas pessoas. Que sabia que as pessoas são, em essência, amor, disfarçadas de espelhos, que refletem umas para as outras aquilo que impede que se mostrem e se vejam como são.
A saudade era do ser que me fazia acreditar que eu não era uma turista num planeta estrangeiro nem uma sobrevivente de uma civilização extinta, como tantas vezes sentia. E me ensinava que toda vez que eu achasse que os outros precisavam de legendas para me entender, eu poderia recorrer aos idiomas que o coração entende. Um sorriso. Um olhar. Um abraço.
A saudade era do amor que aquele ser emanava e do qual eu era feita. Da seiva que permeava todo o jardim. Que era o meu corpo, por trás da roupa de gente que eu usava e da qual precisava cuidar com o carinho com que se cuida da roupa do amado, embora raramente eu lembrasse disso. Da porção em mim que era mágica e sábia. Humilde e serena. Que me intuía. Que me ajudava a desenhar o meu caminho. Encontrar o meu acorde. Escrever a minha história.
A saudade, terna e arrebatadora, era daquilo em mim que tinha um compromisso com a vida, ainda que eu fizesse de conta que o havia esquecido e só honrasse os compromissos que o meu coração nunca assumiu. Daquilo que não se importava com os porquês. Que se desprevenia. Que se enamorava. E que se olhasse para o azul do céu mil vezes se emocionava em todas elas, reverenciando o pintor. Que me lembrava de que eu devia saborear a paisagem com os companheiros de viagem, mesmo sem saber aonde o barco me levaria. E de que se chegasse a tormenta, eu não deveria esquecer, na aflição, que eu não era o barco, e, sim, o mar.
Embora tivesse saudade desse ser amoroso que, em essência, eu era, tinha muito medo de me entregar a ele. E sabia, sem conseguir desviar os meus olhos dos olhos daquela saudade, que aquele era o mesmo medo que estava por trás de outras entregas que ficaram no rascunho. (...)Naquele dia acordei com saudade e com medo. Nem mais casulo nem vôo ainda. Sabia que enquanto eu não voltasse a dar a mão àquele ser que me habitava, enquanto eu não voltasse a dançar com ele, continuaria a me sentir longe de casa, separada da minha gente, fora do meu habitat, perambulando, confusa e assustada, no mundo árido e sem cor que desenhei quando larguei a sua mão.
Para fluir comigo, a vida pedia que eu soltasse o medo e me entregasse. Que dissesse sim. Que acreditasse nela. Eu não sabia como fazer, mas sentia, entre as contrações, que ela estava fazendo por mim, através de cada experiência que eu atraía para o meu caminho.
Naquele dia, grande, acordei com a sensação de que o tempo era outra coisa.
De que a vida era outra coisa.
E eu também.

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